O LIVRO DE OURO DA MPB.
(Ricardo Cravo Albin, Ed. Ediouro, 2003, 368p.)
Nos três primeiros séculos de colonização do Brasil, o que existiu foram bem definidas e isoladas formas musicais: os cantos para as danças rituais dos índios e os batuques dos escravos, a maioria dos quais também rituais. Ambos fundamentalmente à base de percussão (tambores, atabaques, etc.). Em outro extremo, as cantigas dos europeus colonizadores, os hi nos religiosos dos padres e os toques e as fanfarras militares dos exércitos portugueses aqui aquartelados.
A consolidação da nossa música popular é contemporânea ao aparecimento e consolidação das cidades, uma vez que música popular só pode existir ou florescer onde há gente reunida.
Na primeira metade do século XIX, os gêneros mais populares e consolidados eram o lundu e a modinha.
O lundu é uma dança e um canto de origem africana e foi introduzido no Brasil pelos escravos de Angola. Já a modinha é considerada canto urbano branco de salão, de caráter sentimental. Na segunda metade do século XIX, iriam fixar-se os primeiros grandes nomes daqueles que formariam as bases do que é hoje considerada a nossa música popular. Começam a aparecer alguns vultos essenciais.
Um dos primeiríssimos é Xisto Bahia, que interpretava, com muito sucesso, lundus irônicos para o público de circos e teatros (o teatro de revista era o grande centro consumidor e também irradiador da música popular na época). É dele a autoria da primeira música gravada no Brasil, pela Casa Edison, em 1902 – o lundu “Isto é bom”, interpretado pelo ca ntor Bai ano.
A partir de Xisto, começam a aparecer os grandes talentos de renome na música popular, dentre os quais destacam-se Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth.
Em 1899, Chiquinha Gonzaga compôs, a pedido do cordão carnavalesco Rosa de Ouro, a primeira marchinha de carnaval, “Ô abre alas”, cantada até hoje nos folguedos carnavalescos.
Em 1917, Chiquinha e outros artistas fu ndam a SBAT (Socieda de Brasileira de Autores Teatrais), com a finalidade de defender os direitos autorais de seus filiados.
Dessa época destaca-se também Catulo da Paixão Cearense, autor da famosa canção “O luar do meu sertão”.
A grande revolução aconteceu com o aparecimento de Pixinguinha, o patriarca e o estruturador de toda a música que viria depois dele.
Pixinguinha criou inúmeros conjuntos musicais, dos quais se destacou “Os Oito Batutas”, o primeiro grupo a excursionar fora do Brasil (1922, Paris), levando na bagagem o chorinho, o samba e o maxixe).
O carnaval da classe média, na virada do século XIX para o século XX, era de inspiração nitidamente européia. Já a população pobre e mestiça organizava -se em sociedades recreativas, inicialmente chamadas cordões carnavalescos, e posteriormente blocos carnavalescos.
A população pobre do Rio de Janeiro reunia-se na Praça Onze para exercitar -se nos seus batuques e nas rodas de pernada e de capoeira. Essa parte da população não saía no carnaval de forma organizada, mas em blocos desordenados, cujos desfiles terminavam quase sempre em grande brigas de capoeira.
Da música à base de percussão e de palmas produzida por esses negros e mulatos, com o nome de “batucada”, iria nascer o samba.
Além dessas rodas de capoeira e de batucada, quase sempre realizadas nas ruas e praças adjacentes à Praça Onze, eram célebres as festas que se realizavam nas casas das tias baianas. Essas tias, em geral senhoras gordas e grandes quituteiras, davam fes tas para comemorar as datas importantes do calendário do candomblé. Nessas festas, a batucada imperava nas rodas que se formavam nos quintais e cômodos das casas.
O samba só veio a ser registrado com esse nome em discos em 1917, com o cantor Donga, autor do primeiro samba gravado, “Pelo telefone”.
Na segunda metade da década de 20, um grupo freqüentador do Estácio viria a estruturar definitivamente o samba na forma como é hoje conhecido. Esse grupo de pioneiros era comandado por Ismael Silva. O “pessoal do Estácio” entraria para a história da música popular brasileira como consolidador do ritmo e da malícia do samba urbano carioca.
Para o crescimento da música popular br asileira, dois avanços foram determinantes. Primeiramente, a mudança do sistema de gravação mecânica para a gravação elétrica, o que permitia o registro fonográfico de vozes de curta extensão, mas cheias da malícia que o samba exigia. A segunda foi o aparecimento e a espantosa difusão do primeiro veículo de comunicação de massa de nossa história, o rádio.
No Brasil, os anos 30 e 40 (e parte dos anos 50) ficaram conhecidos como “A Era do Rádio”.
A programação radiofônica demandava um consumo sempre crescente de novas músicas, compositores e intérpretes. Foi nessa era de ouro que apareceu um sem -número de gra ndes intérpretes e compositores, levados de norte a sul do país. Foram os primeiros ídolos brasileiros produzidos pela comunicação de massa.
Entre esses astros destacam -se primeiramente Carmen Miranda, Mário Reis, Sílvio Caldas, Orlando Silva (o “Cantor das Multidões”), Francisco Alves (o “Rei da Voz”), entre outros.
Grande destaque teve também Noel Rosa, que cantava o simples das coisas e dos fatos cotidianos. Foi o cronista musical mais preciso e enxuto de sua época. Noel trouxe para a música brasileira a simplicidade e o bom gosto. Em suas criações, Noel Rosa utilizou muitos recursos apregoados pelos modernistas da Semana de 22, como a ênfase no cotidiano e a liberdade métrica.
Já Mário Reis foi definido por Sérgio Cabral como “o homem que ensinou o brasileiro a cantar”. Mário possuía um estilo coloquial de cantar. Ao romper com a tradição operística, que imperava até então, ele inaugurou um novo período na história do canto popular no Brasil, que passou a ser mais fluente e espontâneo. Deve -se lembrar que o novo processo de gravação favoreceu sobremaneira o estilo de Mário Reis, mais simples e natural.
Grande importância o desenvolvimento da nossa música popular teve o Café Nice: o bar-café mais famoso da música popular brasileira. Ficava na avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro. Ali os boêmios, compositores, músicos e intérpretes tinham o seu ponto de encontro. Armavam-se parcerias, escolhiam-se intérpretes e se negociavam músicas.
Na década de 40, o baião trazido por Luiz Gonzaga estabeleceu uma ruptura no monopolitismo dos gêneros típicos da cidade, exprimindo a afluência da migração nordestina para os grandes centros. O Brasil foi surpr eendido por algo inteiramente novo, cheirando –ao perfume da raiz e do chão brasileiros.
Luiz Gonzaga abriu os corações e os ouvidos dos grandes centros urbanos para musicalidades interioranas. Sua música deu opo rtunidade a que outros sotaques, temas e ritmos fossem aceitos nas capitais.
A força, a graça e a veemência de Gonzagão determinaram o aparecimento de dezenas de intérpretes e compositores, sendo o principal deles Jackson do Pandeiro.
Nos anos 50, tem-se a explosão do samba-canção nas boates da Zona Sul carioca. Esse tipo de samba caracteriza -se pela referência à fossa, à dor de cotovelo e à desilusão am orosa e até mesmo existencial. As melhores expressões do samba -canção dos anos 50 foram Antônio Maria e Dolores Duran.
Dick Farney, Lúcio Alves e Johnny Alf – festejados músicos do samba-canção, davam a suas interpretações um sentido de improviso e descontração que já eram indícios da inquietação musical que a Bossa Nova absorveria mais tarde.
Em 1958, o lançamento do disco “Canção do amor demais”, de Elizeth Cardoso, com músicas de Tom Jobim e Vinícius de Morais, marca a fundação da Bossa Nova, por conta da interpretação da cantora e do acompanh amento de João Gilberto em duas faixas.
De início, o termo “bossa nova” referia-se a um jeito de cantar e tocar o samba, com certos trejeitos jazzísticos e com uma pronunciada suavidade tanto no trato musical quanto no poético. Outra característica era a forma de cantar: desenvolver-se-ia a prática do “canto falado” ou do “cantar baixinho”, do texto bem pronunciado, do tom coloquial em lugar da valorização da “grande voz”.
A Bossa Nova nasceu casualmente, fruto de encontros de jovens da classe média carioca em apartamentos ou casas da Zona Sul, onde se reuniam para fazer e ouvir música. O apartamento de Nara Leão, em Copacabana, sediou a maioria desses encontros.
João Gilberto tornou-se a grande referência da Bossa Nova por ter inventado a batida característica do violão e por ter dado uma interpretação pessoal do “espírito do samba”. Sua gravação de “Chega de saudade”, ao contrário do que se pensa, não foi uma unanimidade quanto saiu, em 1958. A Bossa Nova não foi aclamada por todo o mundo. Uma tempestade de críticas apareceu, principalmente contra João Gilberto, a quem se acusava de desafinado, de antimusical, etc. Em resposta, Tom Jobim fez a música “Desafinado”, uma música na medida certa contra os críticos.
A Bossa Nova surgiu no embalo natural da febre pelas transformações pelas quais o país passava. O governo JK – época de otimismo, esperança no futuro – coincidiu com a conquista da Copa do Mundo de 1958, com a construção de Brasília (símbolo de modernidade), com a expansão das es tradas, com a chegada da indústria automobilística. Na m úsica popular, esse processo geral de renovação eclodiria com a Bossa Nova.
Em 1962, foi realizado o histórico “show” no Carnigie Hall de Nova Iorque, com a presença, entre outros, de João Gilberto e Tom Jobim. O espetáculo abriu as portas do mundo para o novo gênero-exportação brasileiro.
A influência do jazz americano internacionalizou a Bossa Nova, permitindo -lhe, inclus ive, atingir maiores segmentos da classe média.
O primeiro LP de Nara Leão (a “Musa da Bossa Nova”), no início dos anos 60, trazia, além de composições bossa-novistas, músicas dos chamados “sambistas do morro”, como Cartola, Nélson Cavaquinho e Zé Kéti, reforçando uma tendência para recuperar o samba de raiz. Nara desempenhou um papel fund amental nesse processo, como elo entre os intelectuais de esquerda e o samba redescoberto.
Em 1964, Nara integrou, ao lado de Zé Kéti e João do Vale, o elenco do histórico espetáculo “Opinião”. O “show” tematizava questões sociais e políticas do p aís, então sob a ditadura militar.
Um dos mais emblemáticos episódios relacionados à ressurreição do samba foi o estabelecimento do Zicartola, nos anos 60. Tratava-se de uma casa de “show” comandada por Cartola e sua mulher, D. Zica. Na cozinha, D. Zica comandava o tempero do feijão que a tornou famosa, enquanto Cartola fazia no salão as vezes de mestre-de-cerimônias. O bar logo se tornou o novo ponto de referência dos sambistas – Zé Kéti, Nélson Sargento e Nélson Cavaquinho eram assíduos, e também toda uma geração de importantes compositores e intérpretes de classe média interessados em conhecer o samba de raiz.
O Zicartola virou moda, como parte de um processo no qual se destaca o papel relevante de compositores preocupados com a defesa dos ritmos brasileiros. O Zicartola chamou a atenção para a temática dos morros.
Foi no Zicartola, por exemplo, que Paulinho da Viola começou a cantar em público. Élton Medeiros foi outro que despontou no bar, onde iniciou uma riquíssima parceria com Paulinho da Viola e até mesmo com o próprio Cartola.
O ressurgimento do samba e sua consolidação acabaram levando à redescoberta do choro, na década de 70.
Nos anos 60, de um lado, crescia a música de protesto, com o engajamento explícito de vários artistas, na tentativa de deter o avanço do autoritarismo militar, mas também bus cando resgatar o que se consideravam as raízes de nossa nacionalidade, ameaçada pelo imperialismo cultural, econômico e político.
Mas, paralelamente, havia extensos segmentos da classe média para quem o viés político pouco significava. Essa parcela da população acolheu calorosamente a Jovem Guarda, que foi um movimento musical que não teve conotações políticas.
Costuma-se situar no tempo a Jovem Guarda por meio do programa apresentado na TV Record de São Paulo com esse mesmo nome, entre 1965 e 1969, estrelado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia.
A Jovem Guarda nos preparou para a diversificação de nosso cancioneiro. Chegou mesmo a influenciar os tropicalistas, especialmente na maneira bizarra e descontraída do vestuário, dos cabelos, além de incorporar o iê-iê -iê e os instrumentos eletrônicos em suas composições.
Nossos primeiros roqueiros também surgiram na década de 60, com Celly Campello (nossa primeira estrela do “rock”), Rita Lee e os Mutantes, os Novos Baianos e Raul Seixas (que se auto-intitulava filho de Luiz Gonzaga com Elvis Presley).
Em 13 de dezembro de 1968 foi promulgado o Ato Institucional nº 5 (o famigerado AI-5), considerado o marco do endurecimento do regime militar e que abriu o ciclo dos nos mais difíceis da história recente do país. O AI -5 foi a demonstração de que a ditadura não tinha mais como conter, sem acentuada repressão, a crescente oposição de vários setores da sociedade.
Em relação ao AI -5, uma boa parte da MPB se colocou como uma frente de oposição. Daí surgem as canções de protestos veiculadas pelos festivais da canção. Destaque para a música “Caminhando” ou “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, que se tornou o grande hino da oposição à ditadura).
O Tropicalismo, que virou a tradição da música popular pelo avesso, surgiu na cena artística a partir de 1967. Liderado por Caetano Veloso, reuniu também Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Torquato Neto, Capinam, os Mutantes, os maestros Rogério Duprat e Júlio Medaglia, entre outros.
A estética do Tropicalismo ressalta os contrastes da cultura brasileira, como o a rcaico convivendo com o moderno, o nacional com o estrangeiro, a cultura de elite com a cultura de massa. Absorveu vários gêneros musicais como o samba, o bolero, o frevo, a música erudita de vanguarda e os “pop-rocks” nacional e internacional, mas também as inovações da Jovem Guarda (como a incorporação da guitarra elétrica). O Tropicalismo buscou apropriar-se poeticamente das disparidades.
Com o Tropicalismo, passou-se a engrandecer aquilo mesmo de que se tinha uma certa vergonha: o Brasil tropical e pitoresco, o país do folclore. O Tropicalismo tinha um afã de pôr as entranhas do Brasil para fora.
O movimento colocou em pauta questões como a necessidade de universalização da música brasileira. Para o Tropicalismo, o que importa é canibalizar, devorar o estrangeiro e aproveitar o que de melhor encontramos nele para “amulatar-se” uma vez juntado ao que é nosso.
Músicos de renome da MPB chegaram a acusar os tropicalistas de estarem traindo os ideais joãogilberteanos e não compreendiam a adesão tropicalista à Jovem Guarda e ao “rock” internacional.
Os tropicalistas, então, resolveram atacar o que chamavam de “esquerda universitária” da MPB.
Observando-se os artistas que alcançaram maior destaque na década de 70, percebe-se de imediato a importância que tiveram os festivais da canção – tanto para lançar nomes e apresentar gêneros, como para mostrar ao Brasil a enorme diversidade que havia alcançado a MPB.
Os festivais foram um grande sucesso de público. Platéias imensas, transmissão ao vivo pela TV, em rede nacional – algo absolutamente inédito para a nossa mídia mas também para a nossa música.
Hoje em dia, a MPB vem se caracterizando pela diversificação. Não há tendência visível para a prevalência de um movimento ou de uma determinada manifestação de nossa música. Assistimos hoje à abertura à pluralidade de gêneros, fontes, ritmos e talentos individuais.
Fonte: www.bomdestino.com
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