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quinta-feira, 12 de abril de 2012

8. A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural.

PESQUISADO E POSTADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).

REFERÊNCIA:

http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/setembro/dia-da-musica-popular-brasileira-4.php

27 de Setembro

A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural

Após o Ato Institucional nº5, instrumento legal promulgado em fins de 1968 que aprofundou o caráter repressivo do Regime Militar brasileiro implantado quatro anos antes, houve um corte abrupto das experiências musicais ocorridas no Brasil ao longo dos anos 60.
Na medida em que boa parte da vida musical brasileira, naquela década, estava lastreada num intenso debate político-ideológico, o recrudescimento da repressão e a censura prévia interferiram de maneira dramática e decisiva na produção e no consumo de canções.
A partir de então, os movimentos, artistas e eventos musicais e culturais situados entre os marcos da Bossa Nova (1959) e do Tropicalismo (1968) foram idealizados e percebidos como a balizas de um ciclo de renovação musical radical que, ao que tudo indicava, havia se encerrado.
Ao longo deste ciclo, surgiu e se consagrou a expressão Música Popular Brasileira (MPB), sigla que sintetizava a busca de uma nova canção que expressasse o Brasil como projeto de nação idealizado por uma cultura política influenciada pela ideologia nacional-popular e pelo ciclo de desenvolvimento industrial, impulsionado a partir dos anos 50.
Na hierarquia cultural da sociedade brasileira, a MPB chegou à década de 70 dotada de alto grau de reconhecimento junto às parcelas de elite da audiência musical, ainda que alguns setores do meio acadêmico e literário não compartilhassem desta valorização cultural excessiva. Enquanto o cinema e o teatro brasileiros, como um todo, não conseguiam formar um público “fixo”, mais amplo, a música popular consolidava sua vocação de “popularidade”, articulando reminiscências da cultura política nacional-popular com a nova cultura de consumo vigente após a era do "milagre econômico", entre os anos de 1968 e 1973. Eis, na nossa opinião, a peculiaridade da "instituição" MPB dos anos 70.
Há um outro aspecto que não pode deixar de ser enfatizado: como o sentido principal da “institucionalização” da MPB, processo marcante nos anos 60, foi o de consolidar o deslocamento do lugar social da canção, esboçado desde a Bossa Nova.
O estatuto de canção que dele emergiu não significou uma busca de identidade e coerência estética rigorosa e unívoca. As canções de MPB seguiram sendo objetos híbridos, portadores de elementos estéticos de natureza diversa, em sua estrutura poética e musical.
A “instituição” incorporou uma pluralidade de escutas e gêneros musicais que, ora na forma de tendências musicais, ora como estilos pessoais, passaram a ser classificados como MPB, processo para o qual a crítica especializada e as preferências do público foram fundamentais.
No pós-Tropicalismo elementos musicais diversos, até concorrentes num primeiro momento com a MPB, passaram a ser incorporados sem maiores traumas. Neste sentido concordamos com Charles Perrone quando ele define a MPB mais como um "complexo cultural" do que como um gênero musical específico2.
Acrescentamos que este "complexo" cultural sofreu um processo de institucionalização na cena musical, tornando-se o seu centro dinâmico.
O estudo da "instituição MPB", em sua fase de consolidação (anos 70), pode revelar as marcas ambíguas, durante a qual segmentos sociais oriundos sobretudo das “classes médias”, herdeiros de uma ideologia nacionalista integradora (no campo político) mas abertos a uma nova cultura de consumo “cosmopolita” (no campo sócio-econômico), forneceram uma tendência de gosto que ajudou a definir o sentido da MPB. Assim, as imagens de “modernidade”, “liberdade”, justiça social” e as ideologias socialmente emancipatórias como um todo, impregnaram as canções de MPB sobretudo na fase mais autoritária do Regime Militar, situada entre 1969 e 1975.
Além desta perspectiva políticocultural moldada pela audiência, a consolidação da MPB como “instituição” se deu a partir da relação intrínseca com a reorganização da indústria cultural, a qual agiu como fator estruturante de grande importância no processo como um todo e não apenas como um elemento externo ao campo musical que “cooptou” e “deturpou” a cultura musical do país.
O ouvinte padrão de MPB, o jovem de classe média com acesso ao ensino médio e superior, projetou no consumo da canção as ambigüidades e valores de sua classe social. Ao mesmo tempo, a MPB, mais do que reflexo das estruturas sociais, foi um polo fundamental na configuração do imaginário sócio-político da classe média progressista submetida ao controle do Regime Militar. Até porque, boa parte dos compositores e cantores mais destacados do gênero era oriunda dos segmentos médios da sociedade.
Se a MPB sofria com o cerceamento do seu espaço de realização social, a repressão que se abateu sobre seus artistas ajudou a consolidá-la como espaço de resistência cultural e política, marcando o epílogo de seu processo inicial de institucionalização. Neste processo, até os tropicalistas Caetano e Gil, considerados “alienados” pela esquerda foram relativamente “redimidos”. Ambos retornaram ao Brasil por volta de 1972 e com a mudança do panorama do consumo musical do país, entre 1975 e 1976, voltaram a ocupar um espaço destacado no interior da MPB.
Paradoxalmente, o fechamento completo do espaço público para os atores da oposição civil, consolidou os espaços galvanizados pela arte, como formas alternativas de participação, nos quais a música era um elemento de troca de mensagens e afirmação de valores, onde a palavra, mesmo sob forte coerção, conseguia circular. Mas, se o fechamento político agudizado pelo AI-5 ajudou a construir a mística da MPB como espaço cultural por onde o político emergia, do ponto de vista da mercadoria cultural, a censura e o exílio foram grandes obstáculos para a consolidação do "produto" MPB, sobretudo durante o governo do general Emílio Médici, entre 1969 e 1974. Isto acontecia por uma razão muito simples: o exílio afastava da cena musical nacional os grandes compositores, base da renovação musical brasileira da década de 60.
Por outro lado, a censura era um fator de imprevisibilidade no processo de produção comercial da canção, além de dificultar o atendimento da demanda por músicas participantes, base do consumo musical de classe média.
A idéia de participação política na MPB assumia diversas formas e todas estavam sujeitas ao controle da censura: crônicas sociais, mensagens de protesto político e construção de tipos populares que expressassem os valores do nacionalismo de esquerda.
Com o novo estatuto de música popular vigente no Brasil, desde o final da década de 60, a sigla MPB passou a significar uma música socialmente valorizada, sinônimo de "bom gosto", mesmo vendendo menos que as músicas consideradas de "baixa qualidade" pela crítica musical. Do ponto de vista do público este estatuto tem servido como diferencial de gosto e status social, sempre alvo de questionamentos e autocríticas.
Do ponto de vista das gravadoras, o alcance de mercado das canções deve contemplar o fenômeno do highbrow e o lowbrow do consumo musical4. A fala de Milton Miranda, diretor da gravadora Odeon, demonstra esse paradoxo constituinte da indústria cultural. Dirigindo-se ao estreante Milton Nascimento, Miranda justifica a autonomia que a gravadora concedia ao compositor: “Nós temos os nossos comerciais. Vocês mineiros são a nossa faixa de prestígio. A gravadora não interfere. Vocês gravam o que quiserem”.
Mais do que uma concessão ao “bom gosto” e à “qualidade musical”, a fala do executivo revela a ambigüidade necessária do produto cultural submetido s leis do mercado. Tendo em vista o caráter do capitalismo brasileiro, cujo polo mais dinâmico se realizou historicamente num mercado relativamente restrito, com produtos de alta capitalização e valor agregado (como, por exemplo, a indústria automobilística). Dessa maneira, podemos sugerir um paralelo com a indústria fonográfica.
A MPB “culta” ofereceu a esta indústria a possibilidade de consolidar um catálogo de artistas e obras de realização comercial mais duradoura e inserção no mercado de forma mais estável e planejada.
A “liberdade” de criação se objetivava em álbuns mais acabados, complexos e sofisticados, polo mais dinâmico da indústria fonográfica, mesmo vendendo menos do que as músicas mais “comerciais”. Dinâmico, pois envolvia um conjunto de componentes tecnológicos e musicais consumidos por uma elite sociocultural.
Ao mesmo tempo, aproveitando-se da capacidade ociosa de produção, produzindo álbuns de custo mais barato e artistas populares de menor prestígio, além das coletâneas (sobretudo as trilhas de sonoras de novelas), as gravadoras garantiram um lucro de crescimento vertiginoso nos anos 70. Portanto “faixa de prestígio” e “faixa comercial” não se anulavam. Na lógica da indústria cultural sob o capital monopolista, estes dois pólos se alimentavam mutuamente, sendo complementares, dada a lógica de segmentação de mercado.
Em suma, o sucesso do polo "popular-quantitativo" (sambão, música kitsch, soul brasileiro, canções românticas em inglês) não conseguia compensar os riscos de não possuir um elenco estável de compositores-intérpretes, algo como um polo "popularqualitativo", bem como um conjunto de obras de catálogo, de vendas mais duráveis ao longo do tempo. O exílio e a censura interferiam justamente na consolidação desta faixa de mercado, tolhida em plena consolidação de uma audiência renovada. Entre 1969 e 1973, criou-se uma espécie de "demanda reprimida" que, em parte, irá explicar o boom da canção brasileira, a partir de 1975, quando as condições de criação e circulação do produto irão melhorar significativamente, com a perspectiva da abertura política. A política de "descompressão" do regime militar exigia uma certa tolerância diante do consumo da cultura de "protesto".
Mesmo com a volta de Chico Buarque e Caetano Veloso, entre 1971 e 1972, as condições de criação e circulação musicais não melhoraram, pois a repressão política e a censura ainda eram intensas. O álbum Construção, de 1971, nas primeiras semanas de lançamento, atingiu a venda de 140 mil cópias, índice comparável aos de Roberto Carlos e Martinho da Vila. A única diferença é que esta cifra se concentrava no eixo RJ-SP, enquanto os outros dois eram vendedores "nacionais".
Este sucesso dava um novo alento ao mercado de MPB, mas o cerceamento à liberdade de criação iria se impor ao compositor nos anos seguintes, chegando no limite da auto-censura, conforme seus depoimentos. O fracasso de público e crítica do LP Chico Canta, de 1973, é uma demonstração dramática do poder da censura sobre o mercado musical.
O LP deveria ser a trilha sonora da peça "Calabar", mas a proibição da peça e das músicas, acabou por destruir o produto, do ponto de vista cultural e comercial, inviabilizando sua circulação. Este "fracasso" era absolutamente incompatível com a capacidade de criação de Chico Buarque, bem como em relação demanda da audiência, que naquele momento rompia os limites do público "jovem e universitário", então os principais consumidores de MPB. Ana Maria Bahiana, uma das críticas musicais mais famosas dos anos 70, escreveu:
"A visão do veio principal da música, no Brasil, é, necessariamente, a visão das universidades - ainda mais que a crítica constante, em profundidade, surgida em meados dos anos 60 e, também, de extração universitária. Isso significa, em última análise, que o circuito se fecha de modo perfeito: a música sai da classe média, é orientada pela classe média e por ela é consumida".
Em que pese certas análises impressionistas, e a carência de pesquisas mais profundas e detalhadas, é possível partir da premissa de que o público estritamente universitário, segmento jovem da classe média mais abastada, fosse o público de MPB por excelência, sobretudo no período mais repressivo, entre 1969 e 1974. A própria indústria cultural irá buscar nestes extratos a nova safra de compositores, visando a renovação do cenário musical: Aldir Blanc, Ruy Maurity, Luiz Gonzaga Júnior, Ivan Lins.
Nos festivais Universitários, organizados pela Rede Tupi de Televisão (1968/1972) e no programa "Som Livre Exportação" (1971/72) da Rede Globo, notamos a tentativa da indústria televisual / fonográfica, em vencer a crise da MPB, direcionando sua produção e circulação para os campi universitários, num momento de retração e segmentação de público, se compararmos com a tendência de expansão ocorrida entre 1965 e 1968. Entre o primeiro Festival Universitário e o programa "Som Livre", nasceu no Rio de Janeiro, o MAU (Movimento Artístico Universitário), que tomou para si a tarefa de continuar a renovação musical em torno de uma música engajada, dialogando intimamente com a tradição do Samba "popular" e da Bossa Nova "nacionalista", e consolidar a hegemonia da MPB no público jovem mais intelectualizado e participante.
Podemos dizer que ao longo do período que vai de 1972 a 1975 (aproximadamente), o espaço social, cultural e comercial da MPB, começava a se rearticular, ainda que timidamente. Alguns fatos marcam este processo: a volta dos compositores exilados (Chico, Caetano, Gil), a paulatina consolidação de um novo conjunto de "revelações" (Ivan Lins, Fagner, Belchior, Alceu Valença, João Bosco / Aldir Blanc), o retorno de Elis Regina ao primeiro plano do cenário musical (com "águas de março" o LP Elis e Tom), o novo alento à música brasileira jovem representada pela meteórica trajetória de Ney Matogrosso e os "Secos e Molhados" e pelo sucesso de Raul Seixas, foram sinais de vitalidade e criatividade num ambiente social e musical desgastado e sem perspectivas.
Para escapar ao implacável cerco da censura ao grande nome da MPB de então, Chico Buarque de Hollanda gravou somente outros compositores no LP Sinal Fechado, além de criar um pseudônimo que marcou época: Julinho da Adelaide (NOTA). O cerco a Chico atingiria seu ponto limite e seria revertido com o antológico LP Meus Caros Amigos, de 1976.
Dois álbuns (LPs) são particularmente significativos para entender a recomposição do espaço social e cultural da MPB, apontando para uma nova explosão do consumo musical no País, sobretudo a partir de 1976. São eles: Chico e Caetano Juntos e Ao Vivo (1972) e Elis & Tom (1974). Foge aos limites deste texto uma análise mais detalhada destes trabalhos.
Apenas salientamos a convergência de antigos desafetos dos anos 60, em nome de uma frente ampla da MPB, já consagrada como trilha sonora da oposição civil e da resistência cultural ao regime. Estes dois discos, além de suas qualidades musicais óbvias, eram altamente simbólicos, na consagração de um processo de renovação musical que se iniciara com a Bossa Nova, em 1959.
Eles representavam "reencontros" de tendências vistas como antagônicas no amplo debate musical e ideológico que ocupou o cenário musical ao longo da década de 60.
O ano de 1972 marcou, também, o fim do ciclo histórico dos festivais televisivos, iniciado em 1965. Na tentativa de salvar o Festival Internacional da Canção (FIC) do desprestígio e do desinteresse da indústria fonográfica e do público, a Rede Globo contratou o veterano dos festivais, Solano Ribeiro, para organizar o evento. Este, por sua vez, pediu carta branca para a produção e para a montagem do júri, que não deveria sofrer interferências explícitas do "sistema". Enfim, Solano quis reconstituir na TV Globo o clima dos antigos festivais da Record.
A princípio, a emissora concordou, mas as pressões do sistema, em seus diversos níveis, acabaram por triunfar. Tentando retomar o clima de radicalidade e "pesquisa" dos antigos festivais, potencializando-os ainda mais, o VII FIC esbarrou na vigilância da censura e nos interesses comerciais da emissora. O pivô da discórdia foi o interesse do júri pela música "Cabeça" de Walter Franco, enquanto a emissora preferia "Fio Maravilha" (de Jorge Ben, cantada por Maria Alcina), mais exportável e preferida pelo público.
Os "morcegos sobre Gotham City", metáfora da repressão política cantada por Jards Macalé no FIC de 1969, triunfaram, apesar da atitude de protesto do júri destituído que tentou lançar um manifesto sobre a censura. Mas o saldo do VII FIC, do ponto de vista da geração de novos talentos foi significativo. Nele apareceram para o grande público nomes como Fagner, Raul Seixas, Alceu Valença, Walter Franco, entre outros.
O FIC de 1972 também expressou um certo clima de radicalidade que marcava os jovens criadores, com sua alardeada aversão às fórmulas de sucesso, incluindo aquelas do "bom gosto", o que acabou criando uma nova tendência na MPB: a dos "malditos".
Luis Melodia, Jards Macalé, Walter Franco, Jorge Mautner, serão grandes campeões de encalhe de discos, ao mesmo tempo que prestigiados pelos críticos e pelo público jovem mais ligados à contracultura, retomando um espírito que estava sem seguidores desde o colapso do Tropicalismo, em 1969.
Também entre 1972 e 1975, começa a se fortalecer a expressão "tendências", para rotular experiências musicais que recusavam o mainstream do samba-bossa nova e não aderiam completamente ao pop sem no entanto recusá-lo. As mais famosas eram a dos "mineiros" (também conhecido como 'Clube da Esquina') e a dos nordestinos (sobretudo os cearenses, Fagner, Belchior e Ednardo)
A retomada do crescimento do mercado fonográfico, por volta de 1975, acabou por dinamizar a MPB, embora não tenha favorecido uma renovação significativa do rol de compositores, na medida em que os campeões de venda permaneceram aqueles surgidos na década anterior. A entrada de novas gravadoras no mercado de MPB, como a WEA, a EMI-Odeon e a CBS (que na década de 60 havia sido identificada com a Jovem Guarda), e a retomada dos investimentos em grandes projetos musicais, na TV e no mercado de espetáculos, deu uma nova dinâmica ao mercado musical brasileiro.
Mas, a rigor, os únicos compositores-intérpretes que surgiram nos anos 70, que logo se tornaram referências importantes para o público e o mercado de MPB foram Fagner e João Bosco, cujas carreiras tiveram um grande impulso após 1973. De resto, o boom comercial da MPB, a partir de 1975, vai privilegiar as carreiras de Chico Buarque, Milton Nascimento (revelação do FIC de 1967, mas relativamente desconhecido como intérprete até cerca de 1972), Ivan Lins (surgido no início da década, mas distanciado do mercado após sua atribulada experiência na TV Globo). Entre os intérpretes: Elis Regina retomava sua condição de artista com vocação para popularidade, abrindo espaço para a explosão de vozes femininas junto aos consumidores do grande público, como Gal Costa e Maria Bethania que, no final da década consolidam suas carreiras junto ao grande público.
A perspectiva de abrandamento da censura e a relativa normalização do ciclo de produção e circulação de bens culturais revelou a enorme demanda reprimida em torno da MPB, consolidando este tipo de canção como uma espécie de "trilha sonora" da fase de abertura política do regime militar e da retomada das grandes mobilizações de massa contra a ditadura brasileira, após 1977.
A própria dinamização das atividades políticas, ainda sob intenso controle do regime, criava um clima favorável ao consumo de produtos culturais considerados "críticos", visto como atitude de protesto, em si e que desempenhava um importante papel na articulação das expressões públicas e privadas dos cidadãos opositores do regime militar.
A partir de 1976, coincidindo com a fase de “abertura” política do regime, a MPB conheceu um novo boom criativo e comercial, otimizando todos os fatores acima mencionados. Consolidada como uma verdadeira instituição sociocultural, a MPB delimitava espaços culturais, hierarquias de gosto, expressava posições políticas, ao mesmo tempo que funcionava como uma peça central da indústria fonográfica.
Assim, uma tendência de autonomia estética e liberdade de criação e expressão se viu confrontada com seu movimento inverso, mas complementar: as demandas da indústria cultural reorganizada, pressionando pela rápida realização comercial do seu produto, provocando uma certa indiferenciação entre entretenimento, fruição estética e formação de consciência.
Nossa tese é a de que estes vetores configuraram a MPB, tal como foi consagrada nos anos 60 e 70, e atuaram tanto na formatação de uma nova concepção de canção no Brasil, quanto na função sociocultural deste tipo de produto cultural. Portanto, nos afastamos tanto da tese da "cooptação" dos artistas pelo "sistema", quanto da visão que aponta a MPB como expressão pura de uma "contra-hegemonia" crítica e desvinculada das pressões comerciais. A nosso ver, os futuros estudos sobre o tema deverão assumir o caráter contraditório, híbrido7 e complexo deste produto cultural brasileiro.
Algumas obras marcaram essa ofensiva da MPB, e através do mapeamento do seu repertório e das performances dos artistas, podemos vislumbrar um quadro das questões em jogo. Podemos destacar os seguintes LPs. Falso Brilhante, Transversal Do Tempo e Essa Mulher, de Elis Regina; Caça à Raposa, Tiro De Misericórdia e Linha De Passe, de João Bosco; A Noite, Nos Dias de Hoje, de Ivan Lins; Meus Caros Amigos, Chico Buarque (1978), Ópera Do Malandro, Vida e Almanaque, de Chico Buarque; Milagre Dos Peixes, Minas, Gerais, Clube da Esquina #2 e Caçador de Mim (Milton Nascimento); Gonzaguinha da Vida e Moleque, de Luiz Gonzaga Jr. Ao lado de trabalhos produzidos por outros nomes, este poderia ser um corpus documental (fonográfico) básico para analisarmos as formas assumidas pela canção na crítica à situação política e social do Brasil, dos anos 70.
A dinamização do espaço cultural e comercial da MPB não foi simplesmente um reflexo da repolitização geral da sociedade brasileira, mas foi um dos seus vetores de expressão, no campo da cultura. O consumo cultural, sobretudo o consumo musical, articulava atitudes, resignificava experiências, mantinha a palavra circulando, inicialmente sob uma forma cifrada, que foi se tornando mais explícita no final da década.
Obviamente, não podemos ser ingênuos, pois este tipo de expressão estava intimamente ligado a uma estratégia da indústria fonográfica. Isto não torna o papel da MPB naquele contexto autoritário menos importante ou complexo, pois ela adquiriu um estatuto que vai além da mercadoria, embora sua articulação básica, como produto cultural, se dê sob aquela forma.
Por volta de 1978, a MPB, compreendida em todas as suas variáveis estilísticas e esferas de influência social, era o setor mais dinâmico da indústria fonográfica brasileira, ao mesmo tempo que readquiria sua vitalidade como "instituição" sócio-cultural e seu caráter aglutinador dos sentimentos da oposição civil. As cifras de vendagem dos chamados "monstros sagrados" (Chico Buarque, Elis Regina, Maria Bethania, entre outros) confirma tal afirmação. Ao mesmo tempo, sua penetração em faixas de públicos mais amplas, fora dos extratos mais intelectualizados e exclusivamente universitários da classe média alta, desempenhou um importante papel na "educação sentimental" e política de uma geração inteira de jovens, principalmente: a chamada geração AI-5. No último terço da década de 70, essa pouco comum confluência de popularidade comercial e reconhecimento estético, parece ter marcado a história da MPB.
Esse auge durará até o começo da década de 80. Por volta de 1983, o cenário musical brasileiro e as energias da indústria fonográfica irão se voltar para o rock brasileiro. A partir daí, a MPB manterá intacta sua aura de "qualidade musical" e trilha sonora da resistência, mas deixará de ser o carro-chefe da indústria fonográfica brasileira, cada vez mais direcionada às várias linguagens do pop, com suas atitudes e estilos próprios.
Além de tudo isso, nos anos 70 a MPB foi o centro de mais um paradoxo. Esse paradoxo se traduziu na confluência entre afirmação de valores ideológicos, via canção, e de consumo musical cuja diretriz era dada por sofisticados mecanismos de mercado. Esse paradoxo, por sua vez, sugere inúmeros problemas que ainda esperam para ser decifrados pela pesquisa histórica e sociológica sobre a canção brasileira.
Bibliografia
Bahiana, Ana Maria. 1980.
Nada será como antes. A MPB nos anos 70. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
Borges, Márcio. 1996.
Os sonhos não envelhecem: a História do Clube da Esquina. São Paulo.
Geração Editorial, p.209.
Canclini, Nestor Garcia. 1997.
Culturas Híbridas. São Paulo, EDUSP.
Eco, Umberto. 1987.
“Cultura de Massa e níveis de cultura” IN: Apocalípticos e Integrados.
McDonald, Dwight. 1960.
“Mass cult and midcult”. Partisan Review, n.2/4.
Perrone, Charles. 1989.
Masters of contemporary Brazilian song. Austin, University of Texas Press.
Ridenti, Marcelo. 2000.
Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro, Record.
Ridenti, Marcelo. 1995.
O fantasma da Revolução Brasileira. São Paulo, Editora da UNESP.
Fonte: www.hist.puc.cl

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